Testamento Vital
O curso da vida foi mudado?
Mais do que nunca, no momento de vida atual, somos convidados a tratar da autonomia da vontade humana, da autogestão, da autorresponsabilidade e dos caminhos traçados pela nossa biografia.
Atuando nos últimos 18 anos em uma atividade profissional que lida com situações de fim de vida, alguns casos estão relacionados ao período da aposentadoria, outros pela perda precoce da capacidade
laborativa, ou ainda em situação de óbito, observo uma crescente dificuldade, em sua maioria, em tratar desses processos de envelhecimento e da morte. Em algum lugar, no passado, o envelhecimento e
a morte deixaram de ser aceitáveis e dignos de quem usufruiu do direito à vida.
E o que a autonomia da vontade humana, autogestão e autorresponsabilidade têm a ver com a morte, uma vez que não morremos porque queremos?
Em uma sociedade tão cheia de sucessos, morrer passou a ser considerado, por muitos, como uma espécie de fracasso. Fracasso na distribuição digna do direito que todos temos a saúde, pela
falta de um serviço à altura das melhores tecnologias, adequado e igualitário, ou ainda, fracasso da medicina, por não ter acertado no tratamento ou na cura, pois esta é a expectativa.
Há que se encontrar alguém ou algo a culpar pela fatalidade da morte?
O curso da vida foi alterado, por meio dos avanços científicos e o que chamávamos de natural, passou a ser visto, ainda que de maneira velada, como fracasso. E caminhando junto com isso, os processos
de envelhecimento e de doença passaram a ser tratados como contingente a ser administrado pela Medicina e o Judiciário, transferindo a estes as decisões finais de nossas vidas. Será que perdemos a autonomia?
Já ouvimos falar da celebração da morte por alguns países, um traço de cada cultura que deve ser conhecido, observado e respeitado. O ponto de observação que me atenho, está baseado no crescente dist
anciamento do ser humano com assuntos que lhe são afins, em especial a morte, porque, no último século, com a união da ciência e tecnologia, a morte passou a ser vista como um evento possível de se driblar.
E como a sociedade não se permite falar sobre os processos do fim de vida, que ocorre para cada ser humano de formas e em momentos diferentes, quando a morte ou uma doença terminal chega mais perto,
é muito mais difícil tratar do assunto.
Isso porque, frente ao medo da perda e a crise de uma doença de grande potencial de perda da vida, a sensibilidade de todos fica exposta e é o momento onde a
emoção, muitas vezes não nos permite tomar decisões e ter ações que deixe a nós ou nossos familiares em paz.
E qual o remédio para tratarmos desse desconforto social? Ouso dizer que o remédio mais receitado é o da prevenção. Quando agimos preventivamente, a qualquer circunstância de vida, se e quando ocorre,
estamos mais familiarizados com os seus efeitos. Nesse caso, a prevenção está em falar sobre a morte e os processos de envelhecimento, compreendendo o que é importante para cada um de nós e para nossos
familiares. O usual é evitarmos o assunto e diante do evento irremediável, geramos um movimento de busca de reparação da saúde. No entanto, quando nos apoderamos de nossa própria biografia, inclusive no
decorrer de
toda a nossa vida, mudamos o movimento e giramos em torno do conforto da alma. Isso, porque no fim de vida esse conforto se mostra tão, ou mais, importante do que reparar o que se perdeu. O sentido e o
valor dado à vida, mostra-se ainda mais importante em momentos finais.
A nossa autonomia pode ser assegurada a qualquer momento, desde que possamos nos expressar, mas há circunstâncias em que podemos estar impedidos de manifestar nossos desejos e é nesse momento que podemos
vivenciar dissabores, pois nem sempre os familiares ou os responsáveis por tomar decisões sabem o que fazer ou concordam sobre o que fazer.
Por meio de um documento, ainda pouco difundido no mundo, mas em especial no Brasil, podemos manifestar nossos anseios, denominado DAS – Diretivas Antecipadas de Vontade. Esse documento permite, não
apenas autonomia nas escolhas, desde que autorizadas em lei, mas que o sujeito seja tratado pelo sistema jurídico, pelo sistema de saúde e por seus familiares, como sujeito de direitos e que tem a sua
própria voz, prevalecendo os seus interesses e desejos sobre os demais.
Definindo e autogerindo nossos interesses, podemos nos libertar da medicina autodefensiva, onde muitos profissionais, mesmo convencidos por meio da análise de um corpo clínico, da irreversibilidade da
doença, sentem-se compelidos a manter um doloroso tratamento, reagindo em resposta a uma sociedade que judicializa a saúde e recusa-se a tratar os processos de fim de vida, como algo inerente ao ser humano.
Em resposta a falta de limite sobre o começo do fim, busca-se a manutenção do tratamento, com medidas heroicas que tiram a paz dos últimos momentos em que ainda há vida.
Longe de ser um inimigo comum, os processos de envelhecimento e a morte são, em última análise, a ordem natural da vida, onde quanto antes nos conectamos de maneira saudável e realista, mais profundos
e leves serão os sentimentos vivenciados, por nós e por nossos familiares.
Acredito que o curso da vida mudou e, diante do momento atual, buscar caminhos e repertório para manter o protagonismo sobre a própria biografia é uma forma de agir, de maneira natural.
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